
Os dois lados do Brasil cordial
Os dois lados do Brasil cordial
Por Cyro Andrade, de São Paulo
11/06/2010
Valor Economico
Anda por aí um certo "brasileiro cordial" de dupla personalidade, ora infernizando o próximo com suas incivilidades, ora exercendo a cidadania com conhecimento de causa e respectiva consciência de direitos e deveres. É um tipo que faz lembrar o perfil desenhado pelo historiador Sergio Buarque de Holanda (1902-1982). Esse sujeito "cordial" (de "coração" no latim) ora se deixa levar mais pela emoção do que pela razão, de mistura com exacerbado apego ao interesse pessoal, o que o faz uma variante de ente primitivo. Isso inclui, entre outras facetas de exclusiva impropriedade, não distinguir entre o que é privado e o que é público, detestar formalidades (ele adora "jeitinhos") e estar sempre de costas para a ética e a civilidade. Mas esse brasileiro conceitual também pode ser visto circulando por uma esfera de comportamento em que transparece a cordialidade vista como expressão de qualidade moral. É quando ele, dando uma volta inteira numa espécie de ciclotimia enfim virtuosa, prefere praticar a civilidade, o que implica discernimento ético e preferência por valores como, por exemplo, benevolência para com o próximo.
A escala de valores que os brasileiros mais prezam, a começar pela benevolência - e, por extensão ou dedução, as atitudes e comportamentos que de algum modo se associam a esses valores - é analisada na versão rascunho do "Segundo Caderno do Relatório do Desenvolvimento Humano Brasileiro". Trata-se de "um documento vivo, para discussão", diz o economista Flavio Comim, coordenador do relatório, produzido por iniciativa do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud).
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O conteúdo deste segundo caderno tem como origem a pesquisa denominada Brasil Ponto a Ponto - cujos resultados constituíram o primeiro volume do relatório - e continua em processo: consultas para levantamento de opiniões e sugestões estão sendo feitas em várias instâncias, principalmente na universidade, como já ocorreu no Rio Grande do Sul, Brasília e São Paulo e vai se repetir em breve no Nordeste e Rio de Janeiro. A versão final deste segundo caderno deve estar pronta em agosto.
E assim vai se caminhando na investigação do papel dos valores humanos na promoção do desenvolvimento humano, com destaque para o que se refere às relações entre valores, educação e violência. O objetivo final é a construção de um Índice de Valores Humanos, que se somará ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) produzido pelo Pnud já há 20 anos (considerada a edição de 2010, a ser publicada). Em paralelo, pretende-se reunir subsídios para a recomendação de políticas públicas que favoreçam o fortalecimento e a difusão de valores de vida credenciados nas pesquisas e nas discussões subsequentes.
Ruy Baron/Valor |
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Flavio Comim: trabalho e escola tornam as pessoas mais abertas a mudanças e inclinadas ao respeito e à tolerância, o que mostra a importância dos espaços públicos para a construção de valores |
Valores são crenças, concepções. Estão na mente das pessoas ou se consolidam em hábitos, normas, culturas e instituições, lê-se no relatório. Valores tratam daquilo que é "desejável", não do que é "desejado". São "trans-situacionais", porque são princípios gerais que vão além de ações ou situações específicas. A honestidade, por exemplo, é um valor que pode ser relevante independentemente de o contexto estar definido no trabalho, no esporte, na política, na família, ou entre amigos. Valores diferem de comportamentos (mas os inspiram), que são ações observadas - positivas, como tratar bem colegas de trabalho, ou negativas, como agressões psicológicas ou físicas.
Na pesquisa Brasil Ponto a Ponto, aproximadamente 500 mil pessoas foram ouvidas sobre o que consideram necessário mudar para suas vidas serem impulsionadas para níveis mais altos de qualidade. A elevação dos valores humanos despontou então como aspiração principal para a boa convivência em sociedade, ou seja, trata-se aqui de valores "de vida", aqueles que efetivamente se tornam guias de ação. É a face do desenvolvimento que, para além das referências macroeconômicas, que informam a estrutura do IDH, "acontece no cotidiano das pessoas", diz Flavio Comim, do que são exemplos as situações que ocorrem na escola, na visita ao médico, na ajuda que o pai dá, ou não, ao filho nas tarefas levadas para casa, entre muitas outras.
A pesquisa revelou ainda que o brasileiro não se orienta apenas pelo contexto de seu núcleo de convivência - como no caso da benevolência, motivada pelo interesse que se devota ao bem-estar das pessoas com as quais se tem contato frequente. Ele também valoriza o bem-estar das pessoas, indistintamente, acreditando que todos devem ter oportunidades iguais e que é importante preservar a natureza. É o universalismo (ver tabela na pág. 6). Além disso, deseja viver em paz e em ambiente seguro, onde se sinta protegido de ameaças (o item "segurança" abrange ainda a estabilidade social e econômica, em sentido amplo, que lhe permita planejar projetos pessoais; fica aí implícita também uma certa aversão ao risco e ao enfrentamento de situações novas). Não se percebe valorizando o poder sobre as pessoas e o status social. Acredita que a realização deva vir da demonstração de suas competências. Valoriza os costumes, mas prefere a criatividade e a liberdade de tomar decisões a obedecer regras e normas sociais. Parece estar aqui explicitado o campo de ação do brasileiro cordial em sua versão incivil.
Silvia Costanti/Valor |
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Olgária Matos: "Os homens são falíveis, mortais, passionais. Instituições de qualidade são necessárias para impedir que o subjetivo tome conta do espaço público" |
As mulheres expressam com mais ênfase a tendência para a benevolência e o universalismo, o que significa que são mais autotranscendentes, isso significando que priorizam os cuidados para com o outro mais do que pretendem fazer valer o que seja de seu próprio interesse.
Ainda não é possível responder por que meninos são menos autotranscendentes, diz Comim, referindo-se a uma das várias questões pendentes de desvendamento. "Se conseguirmos resposta para isso, vamos entender melhor as ações de 'bullying' (atos repetidos de abuso, físico ou psicológico, por parte de quem assim exerce seu poder sobre o mais fraco) e de violência contra a mulher, por exemplo, ou seja, as implicações daquela distribuição de valores." Também se constatou que a educação da mãe é considerada extremamente importante, o que dá ideia da relevância do seu papel e sugere possibilidades de formulação de políticas para reforço de valores específicos.
Comim observa, ainda sobre os resultados da pesquisa, que "o trabalho não é neutro em termos de formação de valores". Quem trabalha adquire mais informação, mais conhecimento, e é mais aberto a mudanças, é menos conservador. Acentua-se a tendência para o respeito, a tolerância. "É um efeito parecido com o da escolaridade, mas esta é ainda mais importante. Vê-se aí como a construção de espaços públicos é relevante."
No capítulo da violência, a percepção das pessoas se expressa nas situações de crime, mas também de violência contra a mulher, na família, na escola. Atribui-se à família (43,1% das indicações) e à escola (24,75%) a proeminência na responsabilidade de ensinar valores. São constatações, segundo Comim, que recomendam fortemente a adoção de políticas integradas, que reúnam ações da família, da escola e do governo (11,25%).
Em que Brasil vive, afinal, esse homem chamado cordial, com sua ambivalência de conduta a compor tão volúvel personalidade? Num ano de campanhas e eleições, é interessante perguntar a que jogo de discursos e influências seus valores são submetidos no transcorrer das disputas políticas. Dá-se assim, talvez, um bom debate, enriquecedor das possibilidades de formação do cidadão e respectiva preferência potencial pela civilidade?
A professora de filosofia Olgária Matos não tem uma visão otimista de horizontes, porque não há como ignorar como funcionam as democracias modernas. O feixe das principais características do sistema é, hoje, tisnado pela "universalização do fenômeno do fetichismo, no sentido de que a ficção vale mais que a realidade e a cópia vale mais que o modelo". Então, "o mundo não se interessa pelo que é original, mas interessa a proliferação das cópias, e tudo passa a se equivaler no mercado".
Com essa mercantilização, a política se transforma. Antes, seu domínio era o da "tradição do franco dizer, da sinceridade, da liberdade de expressão". Era o direito de as pessoas (os políticos, inclusive) "se expressarem livremente no espaço público, sem segundas intenções". E o que era o direito de se expressar livremente? Era o direito de discordar.
"Ora, no universo do marketing político, isso se converteu na 'fabricação' de uma opinião pública por meio da mídia. Cria-se o registro do debate e do que é para ser debatido." É o ambiente em que prolifera, livre e célere, o vírus da corrupção, um mal de que muito se fala e que resiste, no entanto, agigantado ante resistências morais sustentadas por valores que parecem definhar em igual proporção e velocidade.
Aí está, de novo, o mercado açambarcador de múltiplas, e frequentemente indevidas, equivalências e seus efeitos sobre a qualidade do viver democrático assim tornado um tanto vicioso. "O debate, aquele pautado pelo marketing, gira em falso, preso aos vícios e virtudes dos governantes", diz Olgária. "Não trata do que é essencial: a qualidade das instituições. Os homens são o que são: falíveis, mortais, passionais. Instituições existem justamente para impedir que o subjetivo tome conta do espaço público - aquele em que se faz política, em que flui a crítica do discurso político e em que também se constroem e difundem valores públicos. Nesse lugar de debate, o conflito sempre é bem-vindo."
Não será, evidentemente, o debate pautado pelo marketing, mas um outro, enriquecido nas relações entre pessoas que comparecem com seus respectivos valores e os oferecem à confrontação. O balizamento desse embate que, na essência, é moral, será dado por instituições.
"A democracia é incremental", diz o professor Benedito Tadeu Cesar, coordenador do programa de pós-graduação em ciência política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Outro modo de dizer é que "instituições precisam de permanência, de tempo para serem criadas e amadurecidas, enquanto, ao mesmo tempo, vão sendo depuradas". Ecoa aqui a relevância dos conflitos salutares indicados por Olgária. Não se recomenda, porém, importar modelos em tentativa de apressar o passo. O processo inclui a procura de modos de adequar formatos institucionais às tradições e à cultura do país, incluídas condições de fiscalização e punição para a não observância das normas estabelecidas.
Cesar entende que "estamos nesse rumo" de construção institucional - mesmo que o processo, vivificador de um outro, de amplificação da organização da sociedade civil, ainda se ressinta de insuficiências de participação. "Nossas Constituições, antes de 1988, foram outorgadas. Nossas instituições foram construídas debaixo de ditaduras. O Estado moderno, no Brasil, começa com Vargas, de forma autoritária."
Então, "as pessoas têm uma tendência para não se sentirem parte da república, da coisa pública. E frequentemente se comportam como se a coisa pública não fosse de ninguém, e não de todos". Cultiva-se, por consequência, a crença de que "pode-se usar e abusar, sempre achando que é o outro quem está agindo errado".
Valores públicos democráticos, não poucas vezes vilipendiados sob o tacão de regimes que se erguiam como sua antítese, mesmo assim frutificaram através dos séculos e afirmaram-se na sua permanência, com o amparo fundamental da educação.
"A partir de certo momento, porém", afirma Olgária, "a educação perde completamente a função socializadora e humanizadora, de aperfeiçoamento dos costumes, de aprimoramento do conhecimento de si, indispensáveis para o aperfeiçoamento dos valores que regem a sociedade". Passa a ser, então, "uma educação que não é para o mercado de trabalho, mas voltada para as contingências de um mercado de trabalho que se transforma a toda hora".
"Quando se tem uma educação que se modifica em função da velocidade das mudanças tecnológicas que tornam o sistema produtivo obsoleto", prossegue Olgária, "a educação também precisa ser acelerada". Mas o tempo da educação não é o tempo do mercado. "O tempo da educação é lento, demorado, é nele que se constituem todos aqueles saberes importantes na formação da criança e do adolescente, para fazer o adulto que tenha uma estrutura espiritual forte. Isso [o processo], que fortalece a democracia, desapareceu no mundo contemporâneo. O ideário é quantitativo. Mais inteligente não é quem estabelece mais relações entre questões e o refinamento do pensamento. É aquele que é mais rápido. O mercado se torna o único fator de socialização." Ou de dessocialização, "porque é todo competição, exclusão pelo poder aquisitivo". Passa a prevalecer "a ideia de que a felicidade, que deveria ser encontrada em bens morais, internos, se dá por meio do mercado e do consumo de objetos." Nesse mercado não há restrições, não há censura. Entende-se que "tudo que eu quero eu posso ter e, então, vou lá e pego". Não há limite claro entre o permitido e o interdito. "O superego desapareceu. O id, o instinto, confundiu-se com o ego." A civilidade perde, de novo, espaço de cultivo.
O jogo de culpabilização que travam escola e família, numa troca de acusações e expectativas quanto às responsabilidades pela educação formal de crianças e adolescentes - também evidenciado no relatório do Pnud -, não ajuda a civilizar a porção antissocial do brasileiro cordial.
A socióloga Miriam Abramovay, coordenadora de pesquisa da Rede de Informação Tecnológica Latino-Americana (Ritla), cujas atividades incluem o desenvolvimento de projetos para o aperfeiçoamento de processos educacionais, frequenta o dia a dia da insuficiência de diálogo entre famílias e escolas. A gravidade desse vazio cresce com a banalização das microviolências, como também são chamadas as expressões de incivilidade, entre os estudantes. "Quando em nossas pesquisas pedimos aos meninos que falem sobre a violência na escola, eles dizem que só há 'violencinha', nada além de uma bobagem. Acontece que 'violencinha' é o nome que dão a atitudes de racismo, homofobia, humilhação dos mais pobres, de nordestinos."
A escola reproduz o que acontece em seu exterior, e vice-versa. "Esses atos de incivilidade, quando se repetem seguidamente, em espaços públicos, como a escola, ou privados, como a família, causam nos ofendidos uma sensação de abandono, de sujeição inevitável a um vale-tudo. Isso destrói a confiança na escola, na família, na sociedade. Desestabiliza relações. Nem escola, nem família, então, podem cumprir seus papéis. Espalha-se pela sociedade a sensação de que o mundo é feito só de hostilidade." Nesse ambiente, o lado incivil do brasileiro cordial nada de braçada
João Marcelo R Saraiva
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Fonte: Profiticom